Autor de tese sobre violência no
futebol, Felipe Lopes analisa o
cenário nacional, exalta modelo
alemão e reprova torcida única
Vinícius Dias
Doutor
em Psicologia pela USP e docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Cultura da Universidade de Sorocaba - Uniso, Felipe Tavares Paes Lopes tem se
dedicado nos últimos anos a um assunto tão polêmico quanto revelador: a
violência no futebol. "Preciso destacar que o futebol não é uma ilha na
sociedade", pondera. Entusiasta do modelo de mediação de conflitos
aplicado na Alemanha, o professor é pouco otimista em relação ao contexto
nacional. "As perspectivas de superação em curto prazo são pequenas",
afirma ao Blog Toque Di Letra.
Felipe Lopes analisa violência no futebol (Créditos: Vinícius Dias/Blog Toque Di Letra) |
Na
avaliação dele, a busca por soluções passa pela universidade e, ainda, pela
mudança de postura da mídia. "Nada disso, todavia, dará resultados
efetivos sem o estabelecimento de um amplo diálogo com os torcedores",
reconhece. Crítico da elitização do futebol brasileiro, Felipe Lopes também
questiona a tendência de ruptura entre clubes e as torcidas organizadas.
"Se destroem os canais de comunicação com uma parcela importante dos
torcedores e da juventude brasileira", avalia, defendendo o diálogo, desde
que de forma democrática e transparente.
Nos últimos anos, o Brasil tem
figurado entre os países em que há mais violência no contexto do futebol. Na
sua avaliação, há alguma forma de atenuar esse quadro em curto prazo?
Primeiramente,
é preciso destacar que o futebol não é uma ilha na sociedade. Por conseguinte,
em um país onde a violência urbana é endêmica, como o Brasil, as perspectivas
de superação em curto prazo são pequenas. Isso não significa, no entanto, que
nada possa ser feito. Punir individualmente os torcedores que se engajam em
práticas criminosas é imperativo. Também é preciso melhorar o tratamento dado
ao torcedor, que não pode continuar sendo tratado como gado, como,
infelizmente, ocorre muitas vezes. Assim, é preciso melhor as condições de
segurança, conforto e salubridade dos estádios do país, que, com algumas
exceções, continuam sendo muito ruins. Uma polícia especializada, que respeite
os direitos democráticos dos torcedores, também é fundamental.
Deve-se
padronizar seus procedimentos, para que os torcedores visitantes não se sintam
injustiçados e saibam, por exemplo, o que podem e o que não podem levar aos
estádios. Além disso, deve-se acabar com proibições arbitrárias, autoritárias e
ineficazes, que apenas contribuem para eliminar a festa nas arquibancadas. A
CBF e as federações estaduais também possuem responsabilidade no tema. É
preciso um envolvimento concreto dessas instituições com a transformação dos
conflitos no futebol. Assim, elas devem apoiar financeiramente campanhas
educativas e programas e projetos mais amplos de prevenção, como ocorre na
Alemanha. Os clubes, por sua vez, devem fortalecer seus laços com a comunidade.
Também é preciso que eles estabeleçam um responsável por fazer a interlocução
com os outros atores envolvidos na produção do espetáculo futebolístico, como polícia,
clube visitante, Ministério Público, torcida adversária, etc.
Este
deve ser o primeiro a responder em caso de problema, como ocorre na Bélgica. Já
os meios de comunicação devem desdramatizar a cobertura dos jogos e não esperar
a violência eclodir para discutir possíveis soluções. A universidade deve
produzir estudos rigorosos, que possam subsidiar diagnósticos precisos da
situação. Aqui, é preciso destacar que o primeiro passo dado por todos os
países que investiram seriamente em prevenção foi justamente buscar compreender
o problema. Nada disso, todavia, dará resultados efetivos sem o estabelecimento
de um amplo diálogo com os torcedores, que devem ser incluídos no processo de
construção de políticas públicas para os eventos de futebol. O diálogo com o
torcedor deve vir acompanhado de ações sociopedagógicas, que visem ampliar a
tolerância nas arquibancadas e educá-lo para lidar com questões como o racismo,
a homofobia e o sexismo.
Entre as medidas adotadas no país
recentemente estão jogos com torcida única/portões fechados e a proibição da
venda de cerveja. Do ponto de vista do combate e prevenção da violência, como
você avalia a eficácia dessas alternativas?
Medidas
como torcida única e portões fechados são ineficazes, pois a maior parte dos
conflitos ocorre fora dos estádios. Na Argentina, por exemplo, jogos com
torcida única passaram a ser regra em 2013 e, desde então, já aconteceram 36
mortes, conforme foi amplamente divulgado pela imprensa. Para piorar, esse tipo
de medida é injusto com a maioria dos torcedores, que é pacifica e tem o
direito de acompanhar seu clube do coração. Além disso, a mensagem veiculada é
de que o futebol é um espaço de intolerância, onde não é possível a convivência
entre torcedores adversários, o que é muito negativo, sobretudo para as novas
gerações de torcedores. Em relação à proibição da venda de cerveja, esta é uma
questão polêmica, não havendo consenso entre os pesquisadores.
Eu,
particularmente, sou contra essa medida. Primeiro, porque ela é pouco eficaz,
dado que muitos torcedores ficam bebendo fora do estádio. Segundo, porque, para
piorar, esses torcedores deixam para entrar no estádio praticamente na hora de
começar o jogo, o que acaba criando problemas de circulação. Terceiro, porque,
para alguns grupos, o consumo de cerveja é um elemento cultural importante, que
faz parte de uma tradição popular de torcer. Quarto, porque, ainda que o
consumo de cerveja possa, em determinadas ocasiões, acirrar os ânimos e,
consequentemente, alimentar a violência dita espontânea, sua proibição não
ataca, de modo algum, o problema principal: os confrontos coletivos e, às
vezes, previamente planejados entre torcidas rivais.
Conflitos
que, repito, acontecem quase sempre fora dos estádios. Na Inglaterra, por
exemplo, constatou-se que parte dos hooligans não bebe antes dos confrontos
justamente para brigar melhor. A relação entre bebida e hooliganismo é,
portanto, indireta. Tanto o engajamento na briga quanto no consumo excessivo de
bebidas alcoólicas são formas de demonstrar virilidade. De mostrar que se tem
aguante, como se diz nos países hispano-americanos. Mas, reforço, há torcedores
violentos que não bebem e torcedores pacíficos que bebem muito.
Em palestras, você costuma elogiar o
exemplo alemão, que aposta, sobretudo, em educação e mediação de conflitos.
Acredita que um projeto nesses moldes teria êxito no Brasil, um país com
história e características muito distintas?
Sim,
acredito. Evidentemente que são realidades distintas, e qualquer projeto de
prevenção deve considerar as singularidades do contexto em que ele será
implementado. Feita essa ressalva, considero que as diretrizes principais dos
Projetos Torcedores alemães podem e devem servir de norte para o Brasil. Desde
o início dos anos 1980, a Alemanha investe, com muito sucesso, em mediação de
conflito e em medidas de natureza sociopedagógica, reconhecendo o torcedor como
um ator legítimo dentro do universo do futebol.
Esse
reconhecimento é fundamental para que possamos transformar, de modo criativo,
democrático e pacífico, os conflitos no futebol brasileiro. Afinal, a inclusão
dos torcedores no processo de elaboração de normas faz com que eles deixem de
vivenciá-las como autoritárias e repressivas e, portanto, como um convite à
transgressão. Ao mesmo tempo, faculta ao poder público exigir deles total
respeito às normas. Também destaco que, seguindo as reflexões do sociólogo
Pablo Alabarces, a solução para o problema da violência no futebol está principalmente
em produzir uma mudança cultural ampla, recuperando o valor festivo do futebol
e estimulando a tolerância nas arquibancadas, o que, evidentemente, exige
diálogo e ações educativas.
Uma pesquisa divulgada em 2015 pelo
Instituto Stochos apontou a violência/falta de segurança como a principal causa
(43%) da não ida do torcedor brasileiro aos estádios. A maior parte dos ouvidos
(84%) cita as organizadas como responsáveis pela violência. Como você
interpreta esses números?
Considero
que esses números devem, obviamente, ser lidos de forma crítica. Em primeiro
lugar, se o mesmo instituto inverter a pergunta e indagar por que as pessoas
vão aos estádios, muito provavelmente teremos um número significativo de
respostas que afirmam que a principal causa da ida aos estádios é a sua
atmosfera única, produzida pela festa nas arquibancadas. Festa que, como bem
sabemos, é protagonizada pelas torcidas organizadas.
Em
segundo lugar, acredito que esses números são, em grande medida, o resultado de
discursos simplistas, maniqueístas e preconceituosos, que representam as
torcidas organizadas como instituições criminosas às quais são atribuídas todas
e quaisquer mazelas do futebol. Embora haja o engajamento concreto de
torcedores organizados em práticas violentas, esses torcedores são uma minoria
dentro das torcidas organizadas. Além do mais, não podemos perder de vista que
essas torcidas são fonte de lazer, socialização e identidade para milhões de
jovens e que outros atores também são responsáveis pelos conflitos no futebol,
como a polícia.
Em abril, o Sport teve uma vitória
judicial contra a Torcida Jovem, que acabou impedida de frequentar seus jogos.
No mesmo mês, o Atlético/PR vetou o acesso de materiais alusivos a organizadas
em seu estádio. A ruptura entre clubes e organizadas representa uma tendência?
Quais as prováveis consequências?
Parece-me
que sim, infelizmente. A principal consequência disso é que se destroem os
canais de comunicação com uma parcela importante dos torcedores e da juventude
brasileira. Desde que feito de forma pública, democrática e transparente, o
diálogo com as torcidas organizadas deve ser estimulado, não evitado. Por essa
razão, é importante reforçar que diálogo não deve ser confundido, de modo
algum, com negociação clandestina, que é condenável.
Avançando para a perspectiva teórica,
em um de seus artigos você aborda a dimensão ideológica e de resistência dos
combates entre Ultra Sur - torcida direitista do Real Madrid - e Herri Norte
Taldea - esquerdista do Athletic Bilbao -, na Espanha, por exemplo. Há algo
semelhante no futebol brasileiro?
Na
Europa, parte dos grupos ultras está estreitamente vinculada a posições
político-ideológicas, tanto de direita quanto de esquerda. No Brasil, esta
associação não é tão evidente, o que não quer dizer que as nossas torcidas
organizadas não sejam politizadas.
Ao
contrário, as recentes manifestações contra o presidente da Assembleia
Legislativa de São Paulo, Fernando Capez, citado em esquema de fraude (o
deputado afirma que é vítima) em licitações de merenda escolar, bem como os
diversos protestos em todo o país contra a elitização do futebol, contra as
transmissões às 22h e por mais transparência na CBF e federações estaduais,
demonstram que existe espaço para o exercício da cidadania dentro das torcidas
organizadas e de que elas podem, efetivamente, se transformar em um desafio
real aos grupos dominantes, sobretudo se houver união entre elas.
Por
isso mesmo, destaco a importância da fundação, em 2014, da Associação Nacional
das Torcidas Organizadas do Brasil, a Anatorg.
No mesmo trabalho, você argumenta que
a violência produzida no contexto de consumo do futebol profissional não deve
ser tratada como uma manifestação irracional. Neste sentido, o que explica ou
caracteriza esses atos?
Antes
de tudo, é preciso observar que o tema é complexo e não existe um consenso na
literatura científica. A compreensão dos atos de violência no futebol depende
do referencial teórico assumido. De qualquer modo, apresento algumas
explicações que me parecem adequadas. Explicações que não devem ser vistas como
as causas determinantes da violência no futebol, mas como fatores que podem
estimulá-la, facilitá-la, moldá-la. Em primeiro lugar, a violência é cotidiana,
ou seja, ela está presente no cotidiano das cidades brasileiras, e isso se
reflete no futebol. Em segundo lugar, ações truculentas da polícia tendem a
fazer com que os torcedores, mesmo aqueles que costumam ser pacíficos e
ordeiros, reajam negativamente, de modo agressivo.
Em
terceiro lugar, a participação em embates físicos pode produzir, em certas
circunstâncias, adrenalina e excitações agradáveis. Em quarto lugar, essa
participação é fonte de visibilidade dentro dos grupos mais radicais de
torcedores. Estes grupos tendem a ser guiados por um princípio de masculinidade
agressiva, que valoriza a capacidade de aguentar a dor e as adversidades. Neste
contexto, tal participação é uma forma privilegiada de demonstração dessa
capacidade e, consequentemente, de obter reconhecimento dentro desses grupos.
Reconhecimento que, por sua vez, ajuda a galgar na sua estrutura de poder.
Em
quinto lugar, a violência é legitima dentro do universo do futebol, ou seja,
ela conta com consensos, como explica Pablo Alabarces. Tanto é que se pode
observar manifestações de ódio e intolerância em todos os setores dos estádios,
sem distinção. Muitos torcedores que dizem ser contra a violência aplaudem, por
exemplo, quando a polícia age de forma violenta contra a torcida rival. Em
sexto lugar, a violência é frequentemente estimulada pelos meios de
comunicação, que costumam adotar uma retórica que dramatiza o futebol,
convertendo-o em uma questão de vida ou morte. Em sétimo e último lugar, ela é,
obviamente, alimentada pela impunidade.
Outro ponto levantado é o fato de a
violência no futebol brasileiro levar à amplificação da vigilância e, por
consequência, à destruição do que você classifica como 'cultura popular do
torcer'. Como isso acontece? Quais são as implicações?
A
violência é o argumento habitualmente utilizado pelas autoridades públicas e do
futebol para ampliar os dispositivos de vigilância nos estádios e a repressão
nas arquibancadas. Em São Paulo, por exemplo, esse foi o argumento para proibir
a entrada de bandeiras com mastro. Esse também tem sido o argumento para
eliminar os setores populares, como as gerais, e implementar um modelo burguês
de assistência do espetáculo futebolístico, que pretende transformá-lo em um
espaço para se olhar e, claro, consumir.
As
principais implicações disso são que o futebol brasileiro está, cada vez mais,
elitizado e pasteurizado. Mas, felizmente, como diria Michel Foucault, onde há
poder, há resistência. E esta está presente não apenas nas faixas e gritos de
protesto das torcidas, mas no movimento incessante dos corpos de todos aqueles
que, apesar de tudo, mantém viva uma cultura popular de torcer.
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