Especial para o Toque Di
Letra
Icaro Carvalho*
Dia
07 de agosto de 2015. Thomas, torcedor de um pequeno clube do interior da
Inglaterra, estava há muitos meses com seu carnê comprado para a temporada
2015/2016 da Premier League. Em uma tarde nublada, como de costume no país,
saiu do trabalho e foi em direção ao pub que tradicionalmente frequentava. Ele
entrou devagar e logo pediu a Kate sua cerveja. Gostava de ir ali para pensar
e, no dia, só pensava na estreia de seu time, que faria o primeiro jogo em
casa. Ciente da situação, Thomas estava ansioso e ao mesmo tempo esperançoso
com a nova temporada. Não se iludia: o clube havia subido na temporada
2013/2014 e conseguira se livrar da queda com dificuldade no ano anterior.
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Thomas
agradeceu a Kate e tomou sua cerveja lentamente. Sabia que em casa a solidão o
esperava e a única coisa que teria a fazer era se preparar para o novo dia e ir
dormir. Ele terminou o pint, se despediu das mesmas pessoas que sempre via lá e
se dirigiu para casa.
A
casa do torcedor era simples, nos modelos ingleses, com um carpete empoeirado,
sofá, uma prateleira repleta de livros, um aquecedor perto da parede, que tinha
um cachecol azul, símbolo de seu orgulho. Um quarto, banheiro e só. A cama
estava bagunçada, metade de suas roupas estava sobre ela. Entre elas, uma de
suas poucas paixões, a camisa azul, pronta para ser usada. Aquela camisa que o
libertava da rotina e que, ao mesmo tempo, provocava alegria e tristeza.
'A camisa azul' do campeão Leicester (Créditos: Leicester City F.C./Divulgação) |
Thomas
andou em direção ao chuveiro. Precisava se livrar daquele dia. No trabalho,
problemas na mesma intensidade em que desejava ir para casa. No banho, tentava
se controlar ao máximo, o nervosismo estava à flor da pele e não tinha onde
mais colocar seu coração. Enxugou-se e foi direto para o quarto, vestiu o
pijama e jogou tudo que estava sobre a cama no chão. Menos a camisa azul, que
logo foi para o cabide de seu armário, ao lado das roupas bem passadas que
usava para trabalhar. Tomou a pílula que o ajudava a dormir e pôs a cabeça no
travesseiro.
Vitória por 4 a 2 na estreia
Ali
começou a melhor noite da vida de Thomas. Ao abrir os olhos, ele já estava de
saída do trabalho e, assustado, tentava entender o que estava ocorrendo.
Fanático, o torcedor saiu sem pensar em direção ao ponto de ônibus. Na rua já
desabotoava sua roupa social e por baixo dela estava a camisa azul. Entrou no
ônibus e desembarcou no estádio. Apresentou o ingresso, comprou uma cerveja e
chegou às arquibancadas. Radiante, ele cantava com muita vontade, cantava para
deixar a alma ali, expulsar seus medos. A equipe retribuiu e, como se
estendesse a mão àquele torcedor, venceu o Sunderland, por 4 a 2, na estreia.
As
partidas iam passando e seu time seguia pontuando, vitórias magras, empates
complicados, mas a equipe figurava entre as melhores na tabela. Na sétima
rodada, veio a primeira derrota. Os pontos somados até então davam
tranquilidade às arquibancadas e aos jogadores em campo, mas a incógnita em relação
à temporada aparecia e a goleada diante do Arsenal, por 5 a 2, parecia trazer
de volta a realidade.
Claudio Ranieri: arquiteto dos sonhos (Créditos: Leicester City F.C./Reprodução) |
No
jogo seguinte, vitória. Tranquilidade fantasiosa. Mas o torcedor estava com os
pés fincados no chão, suplicava para que seus representantes em campo chegassem
ao número mágico, garantindo a permanência na elite. Uma a uma, as rodadas eram
superadas, e a equipe seguia forte. O país, assustado, conhecia a paixão de
Thomas. Mas ninguém duvidava: aquele time voltaria ao lugar de onde nunca
deveria ter saído, e os adversários milionários, com cofres abastecidos pelos
petrodólares, avançariam para a liderança da competição.
Mahrez: maestro do sonho
Thomas
assistia àquilo da arquibancada e não acreditava. Era um sonho! Sonho que, a cada
chute forte de Vardy em direção ao gol, parecia mais real. Mahrez, um argelino,
que jogava em uma equipe da segunda divisão francesa, aparecia como maestro,
criava as melhores chances da equipe e agraciava os torcedores com lances
espetaculares. Kanté era um muro no meio-campo, impedindo os rivais de
alcançarem a meta do goleiro Kasper, cujas mãos mantinham o sonho vivo.
Thomas
a essa altura já sabia: estava livre do rebaixamento. Era possível sonhar com
uma boa colocação. Quem sabe, com uma vaga em torneio continental. Na 23ª
rodada, um fio de esperança: o time da camisa azul venceu o Stoke City, por 3 a
0, e o Arsenal foi derrotado em seu próprio estádio pelo Chelsea. Thomas
festejava a liderança, e o mundo passava a saber que o Leicester era o líder da
Premier League. Jogo após jogo, os torcedores, de pé, gritavam forte, com
orgulho, saudando os jogadores: "Blue Army". E incentivando:
"come on, Leicester Boys".
Milagreiros de Leicester City no vestiário (Créditos: Christian Fuchs/Instagram/Reprodução) |
O
arquiteto dos sonhos era Claudio Ranieri, o italiano que nunca vingou. Aos
olhos daquele torcedor, nada parecia real, era tudo fantasia. Mas eles faziam o
impossível juntos. Thomas não desejava acordar. Suplicava aos deuses que não
tivesse de trabalhar no dia seguinte e que vivesse para assistir, no King Power
Stadium, à conquista do título inglês pelo time. O Leicester, que jogava do seu
modo, sem a bola, sem os jogadores mais renomados e sem uma filosofia
inovadora. Mas um time com vontade de sobra, que construía uma história, um
sonho, um milagre. O milagre da cidade Leicester. Faltava pouco.
O capítulo final do sonho
No
sábado, empate com o Manchester United. O título não veio no Teatro dos Sonhos,
o palco ideal. O capítulo final passaria pelo Chelsea, de novo ele. Enquanto a
bola rolava no Stamford Bridge e o Tottenham buscava adiar a festa, Thomas
estava naquele pub. Tomando seu pint no lugar de sempre, mas diante do pub
lotado, o sentimento era confuso: queria ser campeão, mas não desejava se
despedir de um sonho pelo qual havia se apaixonado. Na etapa inicial, o Chelsea
não ofereceu resistência aos Spurs, que marcaram duas vezes. No segundo tempo,
os deuses do futebol não falharam: pressão e empate dos donos da casa.
Apito
final. Aqueles olhos, que viam um título que jamais imaginaram, se encheram de
lágrimas. Mas era preciso dar adeus ao sonho e retornar à realidade. De
repente, Thomas abriu os olhos. Havia perdido a hora, mas ainda teve tempo de
mirar o manto azul e abraçá-lo com orgulho. Tomou banho, vestiu-se como os
Foxes, tomou café e entrou no ônibus. Olhava para todos, pensativo, com um
sorriso rabiscado no rosto. No trabalho, desejava apenas que as horas
passassem. Ainda precisava descansar e a cama estava à espera em casa. Dessa
vez, o sonho era ainda maior. O Leicester entrava em campo no King Power Stadium ao som da música da Liga dos Campeões.
*Jornalista mineiro, ex-intercambista. Na Inglaterra, conheceu o
Leicester City e a paixão dos torcedores pelos clubes, inspiração para a
crônica.
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