Volante falou sobre Cruzeiro, racismo, Seleção, Alemanha e
base: 'O jogador confia mais no empresário do que no clube'
Vinícius Dias
Dia 18 de abril de 2012.
Na apresentação, a promessa: fazer história. Aos 34 anos, Tinga foi um dos
primeiros pilares do projeto de remontagem do elenco celeste, que, há cinco
meses, havia lutado contra o rebaixamento. Dia 23 de novembro de 2014. 30 meses
depois, o volante dava a terceira volta olímpica com a camisa da Raposa.
"O diferencial do Cruzeiro é cada detalhezinho, o respeito com todos os
atletas, funcionários", destacou ao Blog
Toque Di Letra, na tarde seguinte ao título brasileiro, selado com a
vitória diante do Goiás.
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Tinga: pilar dentro e fora dos gramados (Créditos: Pedro Vilela/Light Press/Textual) |
O porto-alegrense, ídolo
de Grêmio e Internacional, adorado na Alemanha, referência no Cruzeiro,
personifica a definição de campeão. Na Toca, é um dos mais queridos.
"Tenho uma relação extremamente positiva com todos os atletas e com a
comissão técnica", contou. Tinga, de 36 anos, também falou sobre categorias
de base no país, seleção nacional, futebol alemão e racismo no esporte. "A
gente não pode querer que seja diferente do que acontece no dia a dia",
pontuou.
A trajetória de grande parte dos principais esportistas brasileiros é
permeada por obstáculos. A sua não fugiu muito à regra. Você crê que as
dificuldades que viveu logo no início contribuíram para sua afirmação
profissional?
Com certeza, contribuíram. Acho que
essas dificuldades, esses obstáculos que a gente enfrenta não só no esporte,
mas na vida, são importantes para que a gente possa, de repente, ter um
equilíbrio, uma postura de vencer e também saber conviver com os momentos
difíceis, principalmente no futebol, em que a gente sabe que no domingo é uma
coisa, na quarta é outra. Então, essas dificuldades acabam nos familiarizando
com os altos e baixos que tem dentro da carreira.
Em fevereiro, você foi vítima de um ato racista durante um jogo da Copa
Libertadores, no Peru. Em março, foi a vez do árbitro Márcio Chagas. A vítima,
em agosto, foi Aranha, goleiro do Santos. Existe receita para pôr fim ao
racismo (e ao preconceito) no esporte? Por que ainda não foi colocada em
prática?
Eu acredito que a receita para
qualquer tipo de ignorância, de violência, dificuldade, para qualquer coisa que
possa ser contra o desporto ou fora de regra, é baseada na educação. Então, a
gente não pode querer que no futebol seja diferente do que acontece no dia a
dia. Vivemos um momento de muita falta educação, de muita violência e,
com certeza, se isso ocorre no dia a dia, também vai ocorrer no futebol.
Acredito que isso deva ser tratado como um todo, mudar em todos os sentidos. O
único modo de isso ser amenizado e melhorado a cada dia, a cada tempo, é
a partir da educação.
Depois de sete anos de preparativos, a seleção brasileira fracassou na
Copa de 2014 frente à Alemanha, culminando em uma histórica goleada por 7 a 1.
Para você, que viveu o dia a dia do futebol local quando atuou em Dortmund, em
quê o exemplo alemão pode servir para o Brasil rumo a 2018?
Cheguei à Alemanha em meio à Copa de
2006 e vim embora em 2010. Então, eu peguei praticamente quatro anos, da Copa
que eles fizeram em casa à preparação para ir para à África (do Sul, em 2010).
Eu acompanhava, porque no Borussia tinham muitos jogadores de seleção. A gente
sempre notou a diferença no sentido de uma paciência de quem estava dirigindo,
por parte da imprensa, por parte do povo, com a equipe. Porque a Alemanha
venceu agora, mas perdeu várias vezes e em nenhum momento mudou sua maneira de
trabalhar, seus comandantes.
Então, o exemplo mais claro seria
esse (da paciência). É uma das coisas que a gente não consegue conviver nem
mesmo nos clubes. O treinador perde três, quatro partidas, já vai embora, e
isso estava, automaticamente, se transferindo para a nossa seleção, também. Em
três, quatro anos, nós tivemos quatro, cinco treinadores, e isso representa uma
grande dificuldade. Acho que a melhor coisa a se pegar do alemão é ter essa paciência
e confiança no trabalho.
Nesses últimos anos, as falhas no processo de formação de atletas têm
sido apontadas como uma das explicações para o insucesso do futebol nacional.
Como você vê o trabalho realizado nas categorias de base do país, sobretudo, a
partir das relações da tríade atletas, empresários e clubes?
Vejo de uma forma bem diferente da
época em que eu estava na base. Há um distanciamento muito grande entre jogador
e clube. O grande mérito sempre foi dar identificação, mas hoje o jogador tem
mais confiança no empresário, no dono do passe, quem quer que seja, do que no
próprio clube. Essa ligação de formação com o clube já se perdeu há um bom
tempo. O jogador sabe que ele depende mais do dono do passe ou do empresário do
que do clube. E o clube, automaticamente, acaba também não tendo carinho, nem
aquele que tratamento de antigamente, de cuidar daquilo que é seu. Hoje, não se
sabe se o jogador que está jogando ali é do clube.
Essa (perda de) identificação tem
feito uma diferença muito grande. Hoje, em uma entrevista, o próprio jogador
diz que pensa em jogar no Barcelona, no Chelsea, na Alemanha, antes mesmo de
pensar em jogar no clube em que está. Porque é essa a mentalidade que ele
escuta, que o empresário e o investidor passam, de ficar no clube um ano e ir
embora, jogar lá, jogar cá, então perde essa identificação. Antigamente, a
primeira coisa que a gente queria era jogar no clube da nossa cidade. No meu
caso, que sou gaúcho, o sonho era jogar no Internacional, no Grêmio. Hoje, não.
A primeira coisa que o menino fala, aos 10 anos, é em Barcelona, Real Madrid.
Em três anos de Cruzeiro, você viveu duas fases muito distintas. A
princípio, em 2012, você foi peça-chave no projeto de remontagem do elenco
depois de a equipe ter lutado contra o rebaixamento em 2011. Em 2013 e 2014,
você acabou sendo menos acionado, mas integrou um grupo que bateu recordes e
empilhou títulos. Qual é o segredo desse Cruzeiro?
Não tem como ter um único segredo
dentro do futebol. Não tem uma coisa que faça um grupo ter história. Acho que é
uma série de coisas, e o Cruzeiro tem essa série. Tem uma diretoria ativa,
moderna, uma comissão técnica com bastante vontade de trabalhar, que tem
alegria, não está naquela fase de 'saco cheio' do trabalho, então isso também é
muito favorável. Mas acredito que o principal seja o material humano. Não
adianta ter toda essa tecnologia, toda essa evolução, toda essa vontade... se
não tiver jogadores, você não consegue chegar a lugar nenhum.
O Cruzeiro, a partir de toda essa
preocupação da diretoria e da comissão técnica, conseguiu formar um grupo que
fez a diferença em dois anos, principalmente quando se trata de um campeonato
de pontos corridos, no qual você tem que ter maior número de jogadores de
qualidade, porque são muitos jogos, muitas lesões. Então, acredito que esse tem
sido o diferencial do Cruzeiro, cada detalhezinho, o respeito com todos os
atletas, funcionários. Não tem somente um segredo, até porque, se tivesse,
todos ficariam em primeiro.
Em diversas ocasiões, durante as campanhas vitoriosas de 2013 e desse
ano, você foi citado como um dos líderes do elenco. No dia a dia, como você
exerce esse papel. E, principalmente, como é a sua relação com o Marcelo
Oliveira, que foi muito contestado no início e agora é quase unanimidade?
Eu tenho uma relação extremamente
positiva com todos os atletas e com a comissão técnica. Há uma confiança, um
entendimento. Isso leva um tempo... para conhecer melhor o outro, conhecer a
sinceridade de cada profissional. Vejo
muita sinceridade e muita vontade no trabalho deles, assim como eles veem no
meu dia a dia, no meu trabalho. E em relação aos jogadores, as pessoas acham
que é muito fácil, que o segredo para se tornar campeão é fazer um grupo com
20, 30 jogadores de qualidade. Mas eu te digo que é muito difícil fazer isso,
ter mais de 20 jogadores de qualidade, bem remunerados, com história, que já
tiveram passagens por Europa, seleção e foram campeões por onde passaram.
É muito difícil ter essa convivência
e fazer com que a vaidade não chegue perto desse grupo. Então, eu acho que o
maior diferencial que a gente exerce ali dentro é ter esse cuidado para que se
possa entender que, no fim das contas, quando se consegue o objetivo, todos são
valorizados. Automaticamente, aqueles que são protagonistas do momento, do ano,
acabam sendo valorizados mais individualmente. Um vai para a seleção, outro é
vendido. São coisas que eu também já vivi, então a gente entende. O mais
importante é conscientizar o grupo de que todos são valorizados quando se consegue
uma conquista.
Em janeiro de 2015, você vai completar 37 anos - 18 deles, vividos no
futebol. Seu contrato com o Cruzeiro vai até 30 de abril. Como está o Tinga
fisicamente? Quais são os seus planos para o futuro? A sensação é de dever
cumprido?
Assim como fiz em todos os clubes,
espero cumprir o contrato aqui. Falar de mim fisicamente, hoje é um pouco
complicado, porque venho de uma cirurgia (na perna direita, realizada em
agosto). A única coisa de que eu tenho certeza é a minha parte física, orgânica,
que é uma coisa que nunca perdi. Sempre estive entre os primeiros em todos os
clubes que passei, nos testes físicos, então isso não seria problema. O
problema é ver como eu vou estar após a lesão. Estou em um clube em que, graças
a Deus, tenho o respeito e o carinho de todos e tenho tranquilidade para me
recuperar. Com certeza, tendo condições, eu continuo. Se não tiver, serei o
primeiro a entender isso.
Sempre tive convicção de que o dia de
parar não será a imprensa, nem os outros que vão definir. Se eu sentir que devo
jogar, mesmo que digam o contrário, seguirei jogando e vice-versa. A decisão é
muito pessoal e consciente, no sentido de que a gente tem que entender o que
está fazendo dentro do que se pede hoje no futebol. E o jogador, mais do que
qualquer outra pessoa, sabe aquilo que está rendendo e o que pode render. Eu
tenho orgulho de poder dar o meu 'stop' no momento em que eu não estiver
acompanhando o futebol da maneira como ele está. Até hoje, graças a Deus, a
idade não tem feito a diferença, mas agora é esperar após a lesão.
O Cruzeiro chega a 2015 depois de um bicampeonato brasileiro. De forma
natural, o torcedor vai cultivar a expectativa por campanhas históricas como
foram as de 2013 e 2014. Como o clube e o elenco celeste devem conviver com a
pressão por resultados e conquistas, mas, ao mesmo tempo, não rotular qualquer
resultado considerado adverso como fracasso?
Isso é natural, não tem como mudar. Normalmente,
os clubes vencedores, de tradição, entram todo ano com essa cobrança. No
Cruzeiro, por ganhar dois (brasileiros), a torcida imagina, e nós jogadores
também temos que imaginar por tudo que a gente tem feito, que temos condições
de ganhar principalmente a Libertadores. É um sonho de todo mundo, e o
Cruzeiro, que já ganhou duas vezes, com certeza pensa em ganhar a terceira.
Então, acredito que seja natural. Todos os outros clubes pensam em entrar para
ser campeões, imagina o Cruzeiro, que fez duas temporadas maravilhosas. Mas
entender que acreditar não é garantia de ganhar é uma coisa que, naturalmente,
é difícil.
É uma coisa cultural. Agora, depois
de muitos anos, que a gente está começando a valorizar o segundo, o terceiro.
Foi uma luta de muitos anos, não tinha isso. Nós sempre valorizamos o primeiro,
e o segundo era como se fosse o primeiro dos últimos. Quem chegava a uma final
e não ganhava, também era desvalorizado. Hoje, com o sistema de pontos
corridos, há uma tendência de se valorizar aqueles clubes que fazem bons
trabalhos, mas não conseguem ficar em primeiro. Aos poucos, o torcedor vai
entendendo que, ao fim da temporada, chegar à Libertadores também é positivo.
Mas é natural imaginar que nós temos uma pressão muito grande para atingir as
vitórias, principalmente se for mantida a base de trabalho.